Judith Bernstein retrata a guerra, o fascismo, o racismo, a preservação da natureza e o feminismo. Com quase 80 anos, seu trabalho une sexualidade, direito ao aborto e política, fazendo dela uma artista para lá de atual por Danniel Rangel, de Paris
JUDITH BERNSTEIN, 79 ANOS, sempre usou pincéis para revelar suas ideias vanguardistas por meio de sua arte. Feminista por natureza, a artista nunca teve medo de mostrar a que veio em um tempo em que muita coragem era necessária para se posicionar. Mesmo quando a onda de novas artistas surgia e tornava-se fashionable, Judy estava décadas à frente, porque nem em um só minuto parou de trabalhar e expor sua visão – mais que feminista, poderíamos descrevê-la como humanista. Sua perseverança incansável abriu caminho para tantas outras artistas.
Celebrada por muitos museus da atualidade, Judy foi censurada no início de sua carreira não pela mensagem política que passavam suas criações, mas pelo teor erótico de suas obras. Em exposições como Woman’s Work: American Art (1974), suas colegas assinaram uma petição para que sua obra não fosse excluída, vide Alice Neel, Louise Bourgeois, entre outras. Mas não houve jeito frente ao moralismo da época. Para ela, toda mulher tem um falus (do latim phallus, simbologia dada às representações da imagem de um pênis ereto) em sua cabeça. “É uma questão de descobrir”. E ela descobriu isso muito cedo.
Sua série sobre a guerra do Vietnã traz peças raras e faz parte de grandes coleções de museus e privativas no mundo. As obras foram expostas no Smithsonian Museum e no MIA, em 2019 e 2020, na exposição Artist Respond: American Art and Vietnam War, 1965-1975. Sem falar em 2012, quando invadiu as paredes do New Museum com sua trade mark signature e os trabalhos da guerra do Vietnã, na mostra Once Banished, Never Silenced.
O começo de tudo, após sua graduação em Yale, não foi fácil. Ela saía de porta em porta procurando galerias. E a rejeição fez parte de sua força e seu direcionamento. “Me considero otimista”. Hoje o caminho para mulheres é muito mais fácil do que há anos, e o movimento #metoo foi um dos fatores que contribuiu para essa evolução. “Ainda temos muito que conquitar”, comenta.
Desde sua própria assinatura, citada acima, influenciada pelos grafites de Nova York, ela narra que o carvão é “muito sensual” quando se trabalha com esse material. Seus icônicos pênis em forma de parafusos mostram o controle patriarcal sobre as mulheres em nossa sociedade. Judy passou por várias fases, mas sempre sendo fiel ao seu começo, nos anos 1960. “Meu trabalho é uma evolução, e lido com os problemas do meu país e do mundo através dele, do nosso cotidiano e as barreiras que temos que passar para evoluir”, descreve.
Fun Gun, uma de suas obras prediletas, mostra um pênis em forma de revólver, atirando tal como uma metralhadora giratória, chamando a atenção para o controle de armas, não só em seu país de origem, mas também para evitar as guerras.
Seus trabalhos em qualquer das décadas, tão atuais nos dias de hoje, retratam, além da guerra, o facismo, o racismo, a luta pela igualdade, a preservação da natureza e o feminismo. Todos são temas frequentes e muito fortes em suas obras. Judith questiona tudo: onde a sexualidade, a política e o bom humor se encontram de uma forma única, tornando-a uma artista singular e atual. E ela faz questão de deixar isso bem claro. “Tudo é muito sério, com pinceladas de cor, arte e humor.”
Antes da pandemia, a exposição Hot Hands, na galeria The Box LA, falava sobre toda a raiva que assolava os Estados Unidos, sua política de terror e questionava o fim da democracia. Anos antes, depois da posse do presidente Donald Trump, Judy foi ainda mais longe em um show solo intitulado Cabinet of Horrors (Gabinete de Horrores, em tradução livre), revelando as facetas da supremacia ariana, sexista e fascista do então candidato eleito à presidência dos Estados Unidos, que aconteceu no The Drawing Center, de Nova York. “A ascensão de líderes mundiais populistas ocorre porque há tantos problemas que as pessoas ficam furiosas quando suas necessidades não estão sendo atendidas”, explica. “Os líderes populistas são ativistas experientes, que usam carisma e bravura para atrair os eleitores, mas não têm uma agenda real ou código moral. Em vez disso, são moralmente corruptos e operam apenas para servir a si mesmos”, continua.
Um show de cores fluorescentes, os Big Bangs, símbolos americanos tais como a própria bandeira, o American Eagle, como sinais de alerta para o caminho que a sociedade americana havia escolhido, sempre chamando atenção para o quão frágil é a democracia. Quando questionada sobre o uso das cores fluorescentes, ela disse: “são fantásticas, foi uma grande descoberta tal como o universo. São fortes, chamam a atenção para a obra durante o dia e, como estrelas, brilham no escuro”.
Chocada com a decisão da Suprema Corte Americana que suspendeu o direito ao aborto, assegurado pela constituição há quase 50 anos nos Estados Unidos, ela não deixa por menos. “Apesar do progresso cibernético, ainda continuamos a andar para trás com essa questão”, defende. No momento, ela trabalha em uma nova série que intitulou de GasLight, depois de assistir ao filme noir dos anos 1940 (no Brasil, intitulado À Meia-Luz), em que o personagem Charles Boyer, vivido por Gary Anton, tenta enlouquecer a sua mulher, Paula (Ingrid Bergman), por causa de uns rubis deixados pela sua falecida tia – uma cantora de ópera. Mais uma vez, questiona o poder patriarcal na sociedade, chamando a atenção para o abuso psicológico entre casais e, também, para a sanidade mental.
Depois de muitas horas de conversa e de assuntos diversos, ela se resume como uma otimista, na certeza de que a humanidade caminhou muito. “O único problema é esse medo desenfreado do futuro. A única maneira de os governantes continuarem a controlar a humanidade é através do medo, pois o futuro parece incerto, mas não temos outra alternativa a não ser deixar os antigos valores e abraçar o século XXI.” Para ela, a internet é uma invenção extraordinária que só facilita nossas vidas. “Se formos educados e inteligentes suficientemente para usá-la, podemos desenvolver milhões de maravilhas – desde o encontro de vidas em outros planetas a novas soluções para muitos problemas.”
Humanista, feminista e muitos mais adjetivos cabem nesta força da natureza. Firme e forte em seu pedestal, uma pioneira quase octagenária que ainda acredita que a vida é um presente. E temos que fazer a diferença em nossa breve passagem neste planeta tão fantástico. Àqueles que pensam longe, ela tem um recado. “Me dei conta que é um comprometimento a longo prazo, muito completo, que não tem conserto rápido”, arremata.
Matéria originalmente publicada na revista Radar Bazaar