O Museu do Jardim de Luxemburgo em Paris apresenta a exposição Pioneiras, uma reunião do avant garde feminino nas primeiras décadas do século XX na Cidade Luz.
Quando Norman Mailer insistia em chamar Susan Sontag de “lady writer”, ela fez uma pausa e retificou o aclamado escritor: “No, I’m a writer” … Já mostrando que não havia diferença entre os dois, exaltando sua atitude macho-sexista. Bem antes desse incidente e do manifesto feminista da jornalista e escritora Gloria Steinem, lá atrás, bem no comecinho do século passado, nos famosos Anos Loucos de 1920, Paris era a capital do mundo, cidade onde a liberdade artística, sexual e de gênero coloria as noites de Montparnasse a Montmartre, passando pelo Quartier Latin. Cheia de boemia, festas e, também, de muita arte e literatura. Era proibido proibir, definitivamente.
Foi nesse ambiente que muitas artistas, tais como as russas Marevna e Marie Vassilieff, dividiam as mesas dos cafés noite afora com seus amigos Amadeo Modigliani, Chaim Soutine, Picasso, Henri Matisse, o compositor Erik Satie… Os mesmos que se reuniam no ateliê de Vassilieff em Montparnasse para conversas e muita criação em meio a euforia e êxtase na Babilônia Francesa, assim descrita por Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway em seus livros. O estúdio que acolheu tantos artistas se transformou no Museu de Montparnasse, um lugar cheio de história, verdadeiro laboratório criativo de inúmeros talentos.
Mulheres e homens de todas as partes da Europa partiram em direção à Cidade Luz na busca de liberdade de expressão, tais como a cantora e dançarina Josephine Baker, que após sair dos Estados Unidos, tornou-se a grande estrela e ícone da época (foi naturalizada francesa em 1937), além de militante, espiã durante a Segunda Guerra Mundial e filantropa. Ano passado, entrou para o seleto grupo de mulheres a ocupar o Pantheon Parisiense, sendo a primeira negra deste rol e, mais uma vez, fazendo história, mesmo um século depois de sua aparição.
É justamente cem anos depois que a vanguarda, ousadia e coragem dessas mulheres é contada na exposição Pionnières. Artistes d’un nouveau genre dans le Paris des années folles (Pioneiras. Artistas de um novo gênero na Paris dos Anos Loucos), em cartaz até 10 de julho, no Museu do Luxemburgo, em Paris. Reúne o trabalho de 45 artistas, entre pintoras, escultoras, cantoras, escritoras e estilistas – de Suzanne Valadon a Tamara de Lempicka, Anton Prinner e Gerda Wegener, além da brasileira Tarsila do Amaral.
A exposição mostra não só a emancipação feminina conquistada na época, mas também a coragem e determinação dessas artistas que pavimentaram o caminho para a arte contemporânea de hoje. Em 2021, o Museu Puschkin, em Moscou, realizou uma mostra intitulada As Musas de Montparnasse, que também revelava ao público, pela primeira vez, todas as artistas e musas da época. Nomes como a pintora e gravurista Marie Laurencin, a pintora e escultora dadaísta Suzanne Duchamp, a artista e escritora Valentine Hugo, a fotógrafa, poeta e pintora Dora Maar, a atriz e modelo Maria Lani, e a modelo, atriz e cantora Kiki de Montparnasse, entre outras. O véu do esquecimento estava sendo descoberto. Não é assim que sempre acontece com todos os gênios?
Pionnières vai muito além: assuntos como a liberdade de gênero, algo tão discutido hoje em dia… Na época, era natural para aquela sociedade francesa e europeia, nos dando a impressão de que, na verdade, a humanidade regrediu neste quesito um século depois, e estamos debatendo assuntos já resolvidos. Basta olhar para os retratos da artista Claude Cahun, que não deixa nada a desejar à super contemporânea Cindy Shermann. Em outra sala, o alter ego do pai do ready-made Marcel Duchamp “Madame Rrose Selavy”, aparece fotografado por Man Ray em trajes feitos por Paul Poiret e seu chapéu de plumas em uma atitude para lá de dadaísta. Movimento que nasceu exatamente ali, nos cafés.
A independência feminina também é muito presente na exposição. Podemos encontrar essa atitude na pintura A Odalisca, da artista Suzanne Valadon, uma mulher forte, com cigarro nos seus lábios e, no lugar do famoso jarro de flores, somente livros para ressaltar a intelectualidade, em vez da fragilidade. E, falando em livros, não poderíamos deixar de citar Colette, grande nome da literatura mundial, bem como na moda, Gabrielle Chanel, que, além do famoso robe noir, também aparece retratada por Marie Laurencin. Uma ebulição total, abrindo portas para todas e todos, tais como a cantora e musa da época Suzy Solidor, que aparece em retratos centrais da mostra, e a pintora polonesa Tamara de Lempicka, favorita de Madonna (uma de suas maiores colecionadoras), e homenageada pela cantora no videoclipe de 1986 Open your Heart, dirigido pelo francês Jean-Bapstiste Mondino, em que surge como dançarina de um Peep Show.
Essa é só uma prévia do que estar por vir, pois Pioneiras é a primeira de muitas exposições dedicadas às artistas da primeira metade do século XX. Em abril, durante Bienal de Veneza, a curadora Cecilia Alemani selecionou mulheres de todas as épocas, algo inédito. Leonora Carrigton, inglesa que passou a maior parte de sua vida no México e é considerada a “rebelde”do surrealismo, foi homenageada com o tema da Bienal, The Milk of Dreams, título de um livro infantil no qual fez as ilustrações. A mensagem é simples: the future is female.
Matéria originalmente publicada na revista Radar Bazaar